O GÊNERO INTERROGATÓRIO
A “VAN”
Fazia frio naquela cinzenta manhã de Domingo. Ainda chovia lá
fora, quando acordei com os pingos fortes batendo com ferocidade no metal da
veneziana do meu quarto. As horas pareciam ser bem anteriores às marcadas no
relógio da minha cabeceira, afinal, amanhecera, mas o sol não esboçara qualquer
sorriso, parecendo antecipar a tragédia que bateria à minha porta.
Foi uma madrugada barulhenta: trovões, riscos luminosos
rompendo o céu, atravessando o meu quarto e quebrando o silêncio. Acordei,
algumas vezes, com o alvoroço da chuva, impetuosa e constante, mas logo me
acostumei com os ruídos e só despertei com o toque insistente da campainha.
Abri a porta e, antes de proferir qualquer palavra, deixei-me
silenciar pela presença fria de um corpo estendido à soleira de minha porta. Não
demorei a perceber que se tratava de um cadáver.
Ainda confusa, e mais trêmula do que os galhos movimentados
pelo vento frio daquela manhã e com as mãos talvez mais gélidas do que a pele
daquele infeliz, pedi, pelo telefone, a presença urgente da polícia, que
imediatamente chegou até minha casa com várias pessoas, uma equipe completa.
Enquanto uns fotografavam e outros se encarregavam de retirar o cadáver, um
homem aproximou-se de mim e apresentando-se como investigador de polícia, pediu
licença e, sentando-se ao sofá da minha sala, procedeu ao interrogatório:
_ Minha senhora, procure manter a calma e responda aos meus
questionamentos com a maior clareza possível, priorize fidelidade aos detalhes,
relatando mesmo aqueles que julgar irrelevantes. Não omita fatos. Peço que não
faça distorções ou faça citações fora de contexto. E, principalmente, não
esconda nada. Sua identidade será resguardada e seu depoimento será mantido no
mais completo sigilo – começou ele em tom bem profissional.
_ Está bem – respondi ainda bem trêmula.
O investigador Ulisses Maltanaro, como me foi apresentado,
prosseguia em tom constante:
_ De que forma a senhora chegou até essa cena que acabamos de
presenciar?
_ Então... Doutor... Eu estava no banheiro. Tinha acabado de
acordar, quando tocou a campainha.
_ Antes disso, a senhora foi acometida com algum barulho
suspeito? Gritos, disparos, automóveis?
_ Não, doutor... Eu acordei com o barulho da chuva e, como
hoje é Domingo, resolvi ficar na cama por mais algum tempo.
_ Quer dizer que, além do barulho da chuva e do som da campainha,
nenhum outro ruído chamou a sua atenção?
_ Não, senhor... – respondia desviando o olhar para os
movimentos da equipe lá fora.
Dr. Maltanaro continuava com uma concentração que só mesmo a
profissão para garantir tanto autocontrole. E, seguia imparcial:
_ Durante a madrugada, aconteceu algo atípico, fora da
normalidade, que lhe despertasse a atenção. Repito barulhos diferentes,
movimentação estranha na rua?
_ Doutor, eu acordei algumas vezes sim, mas foi pelos sustos
que tive com os trovões desta madrugada. A tempestade foi feia por estas
bandas, Fora isso, não percebi mais nada não.
_ Ao abrir a porta, o que a senhora viu, além do cadáver?
Neste momento, hesitei. Talvez não devesse falar sobre a
sombra virando a esquina. Fiquei com medo de me envolver e acabar como aquele
coitado estirado à minha porta. Porém o medo não foi maior do que o senso de
justiça. Meu depoimento talvez fosse, mesmo, o mais importante para aquele
caso. E, quase sussurrando, continuei:
_ Eu vi um vulto contornando aquela esquina. Não consegui
decifrar se era adulto ou criança, mas deu para perceber que era a sombra de
uma mulher. Corria... vi um pedaço da saia que virava com rapidez.
O investigador parou, por alguns instantes, e parecia uma
máquina escrevendo tudo o que eu falava naquele bloquinho que eu só havia visto
nas novelas de suspense:
_ Procure lembrar-se de todos os detalhes – disse Dr.
Maltanaro – havia mais alguém com esta provável mulher?
_ Não vi mais ninguém não, senhor.
Enquanto olhava para o interior da minha casa, o
investigador, com ar meio sisudo, levantou-se, retirando do bolso o número e o
nome do chamado que enviei naquela manhã para o Departamento de Polícia. E, com
o olhar ora interrogativo ora exclamativo, desenrolou o Jornal da Cidade, com a
manchete “POLÍCIA FEDERAL DESCOBRE CHEFE DA MÁFIA QUE COMANDAVA PROSTITUIÇÃO DE
MENORES, NA PACATA CIDADE DE JACIÁ, INTERIOR DE SÃO PAULO”.
Fez-se um mórbido silêncio. Dr. Maltanaro corta a frieza,
caminhando em minha direção com o papel do tal chamado:
_ A senhora confirma este endereço?
_ Sim, é o da minha casa.
- Pois então, leia esta notícia que acabou de sair do forno –
prosseguiu ele, mais enigmático do que antes.
De início, não consegui ver quaisquer relações com o ocorrido
à soleira da minha porta. Até que as frases finais ecoaram meus tímpanos como
os trovões da tempestade da noite passada: “A VAN, PLACA BWO 3019, DE CAMPINAS,
SP, COM 11 ADOLESCENTES FOI ABANDONADA À RUA D. FELICIANA ENTRE OS NÚMEROS 114
E 137, NO BAIRRO DE SÃO CRISTÓVÃO, NO MUNICÍPIO DE JUCIÁ, SP.
O tremor voltou. Olhei para o investigador, confirmando
aquele endereço como sendo o mesmo do chamado, o meu :
_ Mas, doutor...
_ Minha senhora, todos os moradores desta rua prestarão
depoimentos e o da senhora é encadeará os outros. Tudo indica que estamos
frente a frente de uma investigação minuciosa dos fatos aqui ocorridos pelo
tempo que for necessário, até elucidar todos os meandros, possíveis ângulos,
pontos de vista e personagens envolvidos nesse assunto. Por favor, aguarde
contatos.
A viatura da polícia
cruzou a esquina guiada pela minha indignação, que mal consegui firmar meus
olhos naquela “Van” parada há quatros casas da minha.
( ANA PAULA C.G.CRNKOVIC)